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Carta à menina

Querida menininha,

faz algum tempo que nao nos falamos. Sei que você, em outros tempos, com essa minha ausência, estaria se sentindo magoada e teria ido prum canto choramingar que nao é amada. Reclamaria da eterna falta de amor que marcou tao terrivelmente teu passado e tua mente, e remoeria todos os teus ressentimentos novamente. Até que esse mover te deixasse muito mal e você adormeceria embalada por um canto melancólico, até que  o amanha, ao te acordar, te encontrasse com os olhos inchados de tanto chorar. 

Você me visitou tantas vezes nesses últimos trinta anos que deve ter sido estranho pra você, a minha ausência de agora. Sei que era bom quando eu pegava na tua mao e íamos passear. Me desculpe menininha, acontece que eu cresci. E agora preciso que você largue minha mao. Por muitos anos, você assustada e medrosa, me assustou e meteu medo. Nao! Nao quero dizer com isso que você é feinha, como tanto já te disseram. De modo algum! Você é até bem bonita. Mas você me assustava com sua carência extrema. Sabe aquele buraquinho vazio e sem  fundo que você guardava no olhar e que procurava preencher com tantas coisas? Pois é, eu tinha medo. Medo de entrar por ele e nunca mais sair, assim como parecia que aconteceria com você. Você era tao assustada. Sei que se viu muitas vezes como que enjaulada, presa por grilhoes imaginários, tendo a boca como fechada, pra nao gritar. Sei que dentro de você, sua alma berrava, seu espírito queria sair do seu corpo e seu corpo preferia morrer naquela escuridao. Oh menina, como você me dava pena. 

Mesmo assim, quando você vinha me ver, era sempre uma boa hora. De alguma maneira, ter você por perto me fazia lembrar de coisas doces, como doce era a presenca da vovó. Ver a vovó de novo através dos teus olhos era voltar no tempo e me ver de novo ao lado dela. E ter aquela pele macia me abracando, aquele sorriso de novo, podia até ouvir o ruído da máquina Singer na sala... aquilo me lembrava de quando era bom estar com você. Mas tua presenca era carregada também de dores que eu preferia esquecer. Teu corpo frágil, tuas pernas que pareciam querer quebrar a cada pular de corda, no chicotinho queimado que as meninas brincavam na rua, me deixavam lá no passado. Como se as ruas de barro batido onde brincávamos, tivessem garras, me deixando presa ali, quando caía e era colocada pra fora no cantarolar das cantigas das meninas.

Sim, você me salvou muitas vezes, quando me visitava. E eu nao pude te salvar. Me desculpe. Mas isso nao estava ao meu alcance, sabe? Cheguei tarde, muito mais de trinta anos depois. A vida me segurou pra eu nao correr até você. Era preciso que você passasse pelo que passou pra dar valor a Quem você haveria de conhecer um dia. Algumas coisas, menina, nao podemos compreender, entende? Algumas coisas sao realmente muito complicadas e nem eu posso te explicar, nem mesmo hoje. Mas elas nao acontecem somente com você e nem doerao para sempre. Elas tinham somente, que acontecer. É dali que vinha o buraco vazio no teu olhar. Buraco sem fim, que ia até o fundo da alma vazia. Hoje entendo. 

Mas como te disse, cresci. Hoje sou adulta e gosto pela primeira vez disso. Tá certo, ainda me olham como se eu fosse você, mas de alguma maneira, isso é bonito e me agrada. Prometo conservar algo bom que é seu, tá bom? Afinal, nao foi de todo ruim, ter sido você. Toda a tua ternura guardarei comigo até o sempre. Mas a tua dor nao mais me pertence. Ficou no passado. E você agora está livre. Nao através de mim, mas dEle, que me achou. Ele que já tinha me achado lá, quando ainda pensávamos que éramos só nós duas... Eu que nao deixei você enxergá-Lo, porque a dor me sucumbiu e eu achava que ela era maior que Ele, que tudo. Mas nao era! Eu estava enganada. Mas enxerguei a tempo. 

E o buraco nos olhos que invadia a alma sem fundo, foi coberto com o sangue dEle que sarou TODAS as feridas. 

Por isso, seja feliz menina!
Com amor
Nina

***
Guarda-me como à menina do olho; esconde-me debaixo da sombra das tuas asas,

Salmos 17:8

Sa

Guarda-me como à menina do olho; esconde-me debaixo da sombra das tuas asas

Salmos 17:

Guarda-me como à menina do olho; esconde-me debaixo da sombra das tuas asas,

S
Lembrei que faz um pouco mais de um ano que nao recebo mais a sua fantasmagórica visita, ao ler hoje uma postagem da Camila

Comentários

  1. A menina veio responder :-)
    "Obrigada Senhor por ter nos libertado e me protegido quando pensava que estava sozinha!"

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