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Meu querido pé de manga

Na casa em que morávamos, quando eu tinha onze anos, havia cinco mangueiras. Cinco dessas maravilhosas criaturas num mesmo quintal, dá pra acreditar?! Como éramos cinco filhos, cada um tinha a sua árvore. A minha era a mais velha de todas, ficava entre as duas jovens e robustas mangueiras das minhas irmãs, que tinham a idade mais aproximada da minha. 
Havia dias em que subíamos, cada uma na sua árvore, e ficávamos chupando manga e conversando, lá do alto. Podiamos ver as criancas correndo na rua, nossos irmaos menores brincando no quintal, nossa mae estendendo roupa no varal, o cachorro latindo atrás de um gato, o brilho ofuscante do fusca na garagem, as folhinhas verdes  do nosso pequeno gramado, o vermelho vivo dos nossos hibiscos encostados ao pequeno muro, e as mangas que caiam em cima do telhado, tornando-se cada vez mais amarelas, manchadas com uns pontos amarronzados. O que nos causava dó, desperdício de mangas! Às vezes, subíamos através dos galhos da minha árvore, até o telhado, para salvar aquelas mangas maduras, quebrávamos telhas e nos dias de temporal amazonense, quando alguma goteira era notada, mamae descobria nossa traquinagem.  

A minha mangueira também era a que mais gostosas mangas produzia, e a que mais lagartas de fogo tinha. Éramos atacadas, quase todo dia, por aquelas terríveis monstrinhas rastejantes, mas elas nunca foram capazes de nos afastar de nossas árvores queridas. Tínhamos muita vontade de fazer um balanço, mas seus galhos nao nos davam muita garantia de que nos aguentariam, além disso, eram muito altos. Havia dias também em que eu conversava com ela, tentando fazer dela minha melhor amiga, assim como o Zezé fazia do seu pé de laranja lima, meu livro preferido naquele tempo. Prometia que escreveria sobre ela um dia, assim como aquele escritor fez, e desde que me lembro do prazer da escrita, minha árvore nunca foi esquecida.

Nao dá para esquecer as lembrancas daqueles dias quentes da infância, trepada numa árvore tao frondosa, com suas folhas longas e tao verdinhas, sentindo o cheiro maravilhoso de manga, naquela Manaus do início dos anos 80, de gente colorida, como as fotos que vejo hoje, com filtros falsos, mas que sao exatamente assim, na minha memória nostálgica. Tempo de descobertas, de namoradinhos, de música lenta, de amizades verdadeiras, de escola nova a cada dois anos, de brincadeiras na rua, de bolas, patins e bicicletas, de banho de rio, de vó ainda por perto.

Abracada a minha árvore, eu tocava nas suas frestas ásperas ao longo de seu caule, sentia seu cheiro e queria ser forte como ela. Eu, que sempre fui tao pequena e frágil, ressentida e calada, a mais boba das meninas, tinha nela, uma amiga poderosa e forte. 

Quando mudamos de casa, nos abracamos, ainda me lembro disso, minha mangueira e eu. É forte e terno o abraco de uma árvore! 

Morar na Vila Militar foi o maior privilégio, uma pausa refrescante numa infância quente, cheia de alegrias e muitas dores. O lugar mais incrível em que já vivi! Mas já era hora de mudar dali. Estávamos crescendo, a maioria dos nossos amigos já havia mudado, com excecao do Macedinho, que também logo mudaria, e que na despedia, me deu uma cartinha meiga e doce, como ele sempre fora comigo.  

Certo dia, quando minha filha mais velha tinha cerca de oito anos, e eu mais de trinta, paramos, minhas irmãs e eu, em frente a nossa velha casa. Ela estava levemente diferente, e parecia bem menor do que era na nossa lembranca. E eu chorei. A nova dona da casa nos viu, olhando curiosas por cima do murinho. Soube que tínhamos morado ali, e nos convidou a entrar um pouco. 
Extasiadas, entramos, olhamos a varanda de piso vermelho, onde escorregamos tantas vezes de barriga no sabão, vimos o jardinzinho, as mangueiras, o quintal, e olhamos a cozinha de longe, onde tantas vezes víamos nossa mae cozinhando. Tudo era tao mais bonito antigamente...

Nao lembro hoje se acenei para minha mangueira, nem mesmo sei dizer se ela ainda estava ali, e se nao o fiz, posso dizer que sinto muito. Sei que minha infância, foi marcada por ela. E se tivesse que ter um aroma, seria o de manga. Mas também seria o de jasmin ou seria de lavanda? Como posso ter esquecido qual era o perfume preferido da minha avó?! Sei que também havia um sabonete na sua penteadeira, o alma de flores... e as florzinhas de jambo embaixo da árvore que formavam um belo tapete cor de rosa, ou o cacau quando se abria depois de umas marretadas, ou a polpa suculenta do cupuaçu sendo cortado por nós, para fazer suco ou um creme gelado...        


Foto: Nirley Sena
A vila militar, há poucos anos, e as legendárias mangueiras

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